Papo de Teatro com Roberto Alvim
Roberto Alvim é diretor e dramaturgo
Como surgiu o seu amor pelo teatro?
Surgiu no momento em que me dei conta de minha impossibilidade de habitar o mundo da maneira como este se configurava, e da necessidade imperiosa de reconstruir tudo (inclusive a mim mesmo), desenhar outras possibilidades, alteridades radicais, diferenças, linhas de fuga. O teatro se constitui como o campo fértil para a expansão destas outras construções.
Lembra da primeira peça que assistiu? Como foi?
“Fedra”, de Jean Racine, direção de Augusto Boal, com Fernanda Montenegro. Eu tinha 12 anos, e o deslocamento que a obra provocou em mim foi extremamente poderoso. Percebi que o mundo não era só a vida cotidiana, que a experiência humana era muito maior do que eu supunha possível.
Qual foi a última montagem que você viu?
“Abracadabra”, de Luiz Päetow. Um espetáculo singular, de imensa importância.
Um espetáculo que mudou o seu modo de ver o teatro.
“4.48 Psicose”, texto de Sarah Kane, com Isabelle Huppert, direção de Claude Régy, em minha opinião o maior diretor de teatro em atividade hoje.
Um espetáculo que mudou a sua vida.
O teatro precisa, sempre, mudar as nossas vidas, ampliando a experiência humana de nosso tempo, nos conduzindo por veredas insuspeitadas, para além da experiência que a cultura pode proporcionar.
Você teve algum padrinho no teatro? Se sim, quem?
Não, mas tive três mestres, que foram fundamentais em minha fase de formação: os diretores Moacyr Góes (no Rio de Janeiro, início dos anos 90) e Antunes Filho, em 1995; e o dramaturgo Bosco Brasil, em 2001. Eles me mostraram, cada um a sua maneira, que o teatro pode ser arte, que a realidade da cena não precisa imitar o mundo, mas que pode se configurar como uma outra possibilidade de experienciarmos a vida.
Já saiu no meio de um espetáculo? Por quê?
Já, lamentavelmente. Aconteceu porque percebi que se tratava de uma obra castrada, que negava a infinita potência transfiguradora do teatro, limitando-se a reproduzir formas e discursos hegemônicos, como um papagaio ou um boneco de ventríloquo. Toda forma traz consigo uma ideologia, e às vezes nos tornamos (ainda que inadvertidamente) instrumentos de linhas de pensamento que limitam a liberdade humana.
Teatro ou cinema? Por quê?
Teatro, sem dúvida alguma, porque se irmana à vida, no sentido de que se trata de uma construção biofísica que se processa diante de nós, conosco. Trata-se da presença humana (pura, sem intermediações) em sua máxima potência, modelando o tempo, o espaço e a própria condição humana, através de outras habitações da linguagem.
Cite um espetáculo do qual você gostaria de ter participado. E por quê?
“O Balcão”, texto de Jean Genet, direção de Victor García, pelo lugar mítico que a montagem ocupa em meu imaginário.
Já assistiu mais de uma vez a um mesmo espetáculo? E por quê?
Sim, e acredito que quando uma peça se coloca no campo da arte, deve ser visitada mais de uma vez, como fazemos com um quadro ou com um livro. Na primeira vez somos tomados pela estranheza diante de um sistema formal fundante, e tendemos a reagir com repulsa. Aí precisamos olhar de novo, para compreendermos e vivenciarmos plenamente a experiência que a obra pode nos proporcionar. Quanto melhor o espetáculo, quanto mais inaugural é o seu sistema, mais se torna imperioso um segundo olhar.
Qual dramaturgo brasileiro você mais admira? E estrangeiro? Explique.
Todos os grandes dramaturgos (clássicos e contemporâneos, nacionais e estrangeiros) são exemplos, não modelos. Percebo a pulsão de ruptura com uma lógica cultural banalmente limitadora e redutora da condição humana em seus trabalhos. Analiso suas estratégias, o modo admirável como tensionam suas obras; são exemplos de como a dramaturgia pode ser revolucionária, de como pode nos levar a uma renovação completa de nossa noção de sentido. São exemplos, volto a dizer, não modelos; mas são nomes como Harold Pinter, G. Motton, Sarah Kane, Heiner Müller, Michel Vinaver, Richard Maxwell, Valère Novarina, Edward Bond, Jon Fosse, Joe Orton, Enda Walsh, Samuel Beckett, Arne Lygre, David Harrower, que provam que é possível, sim, reconstruir o mundo inteiro sobre o palco. Entender e vivenciar a nossa humanidade de outros modos, transfigurando os significados, configurando outros modos de subjetivação. Para isso, o trabalho de poetas como Friedrich Hölderlin e Robert Creeley, de romancistas como William Faulkner, Herta Müller e Antônio Lobo Antunes, de filósofos como Ludwig Wittgenstein, Martin Heidegger, Jacques Lacan e Gilles Deleuze, de pintores como Jackson Pollock, Willem de Kooning, Mark Rothko, Barnett Newman, Francis Bacon, Cy Twombly, e de teóricos da arte como David Sylvester, Clement Greenberg, Arthur Danto, T. J. Clark e Harold Rosemberg também são estímulos fundamentais.
Qual companhia brasileira você mais admira?
Admiro a companhia São Jorge, de Georgette Fadel. Reconheço autoridade artística (ética e estética) em tudo o que fazem.
Existe um grupo ou companhia de teatro que você acompanhe todos os trabalhos?
Sim, o Societás Raffaello Sanzio, grupo italiano de Romeu Castellucci; e o New York City Players, grupo americano de Richard Maxwell.
Qual gênero teatral você mais aprecia?
Não acredito em gêneros. É um modo confortável de normatizar a produção artística. Toda grande obra não se localiza em gênero algum, transitando em esferas inomináveis, localizando-se fora da cartografia reconhecível da cultura.
Qual lugar da plateia você costuma sentar? Por quê? Qual o pior lugar em que você já se sentou em um teatro?
Acredito apenas em teatros pequenos, íntimos, para poucos espectadores, nos quais todos os lugares são bons, porque o fluxo de energia que se estabelece entre palco e plateia não é obliterado pela distância.
Fale sobre o melhor e o pior espaço teatral que você já foi ou já trabalhou?
Os melhores são aqueles nos quais a energia encontra fluxo livre na sala de espetáculos; os piores são aqueles imensos, pretensamente luxuosos, nos quais as cadeiras se parecem com as mesmas que encontramos em salas de espera de aeroportos. O poderio econômico ostensivo destes lugares é avesso à possibilidade maior do teatro, que é a de reconfigurar, política e existencialmente, as nossas vidas.
Já assistiu a alguma peça documentada em vídeo? O que acha do formato?
Já, e serve apenas a título de registro. Não podemos confundir isto com o fenômeno teatral real, que só pode ser experimentado em sala de espetáculo.
Existe peça ruim ou o encenador é que se equivocou?
É ruim quando não nos proporciona a renovação, de modo autônomo, de nossa sensação de mundo. É ruim quando a imagem da humanidade construída no palco é estereotipada, banal. É ruim quando perpetua a ignorância, quando propaga uma ideia acerca do ser humano que é conveniente para a formação dos grandes e anódinos mercados consumidores de nossa alienadora sociedade contemporânea. A responsabilidade sobre isso pode advir da visão superficial do encenador, do dramaturgo ou dos atores; nestes casos, não é que seja apenas ruim: é trágico, no sentido do desperdício de uma valiosíssima e insubstituível oportunidade.
Como seria, onde se passaria e com quem seria o espetáculo dos seus sonhos?
Vivo o teatro dos meus sonhos todos os dias, com minha companhia, o Club Noir. É exatamente onde eu sempre quis estar: um lugar de criação artística sem concessões, norteado pela descoberta e pela invenção de outras possibilidades para o ser humano. Não quero estar em nenhum outro lugar a não ser aqui, com estes atores.
Cite um cenário surpreendente.
Aquele que existe como uma parte indissociável do todo, sem se impor como elemento autossuficiente, por mais belo ou impressionante que seja.
Cite uma iluminação surpreendente.
Aquela que compõe uma dramaturgia da luz, configurando um sistema complexo que dialoga com a obra, criando outros níveis de leitura, deslocando nossa percepção de modo surpreendente.
Cite um ator que surpreendeu suas expectativas.
Luís Melo, em “Vereda da Salvação”, texto de Jorge Andrade, direção de Antunes Filho.
O que não é teatro?
O que não reconstrói a vida segundo outras regras, distintas daquelas que seguimos no mundo lá fora.
Que texto você foi ler depois de ter assistido a sua encenação?
“Quando Nós Mortos Acordarmos”, de Henrik Ibsen, após assistir à encenação de Robert Wilson, com o American Repertory Theatre.
A ideia de que tudo é válido na arte cabe no teatro?
A experimentação é inerente à criação de obras de arte, na medida em que o artista busca sempre a renovação das formas e dos discursos, vivificando sua produção e ampliando o working space do teatro. É preciso manter o espírito aberto. O julgamento a respeito da validade ou não da experiência fica a cargo de cada um dos receptores. O que foi altamente válido para mim pode não ter sido pra você, e vice-versa.
Na era da tecnologia, qual é o futuro do teatro?
Enquanto a morte existir, haverá teatro.
O teatro é uma ação política? Por quê?
O teatro é o campo de experienciação de outras possibilidades de vida. Mais que qualquer discurso panfletário, analítico ou acusatório, compreendi que esta era a verdadeira maneira de configurar um teatro profundamente político. O grande ato político, o mais potente, não é retratar o mundo, mas reconstruí-lo completamente, através da materialização de outra humanidade possível, que nos leve a questionar, na base, o modo como pensamos, sentimos, vivemos.
Quando a estética se destaca mais do que o texto e os atores?
Forma e conteúdo são indissociáveis. A forma de uma peça é o seu próprio conteúdo.
Qual encenação lhe vem à memória agora? Alguma cena específica?
A cena final de “Ode to the Man Who Kneels”, texto e direção de Richard Maxwell, apresentada no FIT de São José do Rio Preto, em julho de 2010. Mítica e banal; simples e altamente complexa; cômica e trágica, tudo isso ao mesmo tempo. Instabilidade permanente, trânsito e amálgama de instâncias aparentemente inconciliáveis, gerando uma experiência estética inclassificável.
Em sua biblioteca não podem faltar quais peças de teatro?
A obra completa de Harold Pinter.
Cite um diretor (a), um autor (a) e um ator/atriz que você admira.
Claude Régy (diretor); Sarah Kane (dramaturga); Juliana Galdino (atriz). Todos eles colocam o teatro em um lugar impossível, bordejando o abstrato de modo empírico.
Qual o papel da sua vida?
Não sou ator, mas uma personagem que me obceca, como artista e como ser humano, é o Pinóquio, de Carlo Collodi. Uma criatura que quer se tornar outra coisa, um ser em constante hibridação, norteado pela ideia de que é pela desobediência que podemos configurar nossa humanidade.
Uma pergunta para William Shakespeare, Nelson Rodrigues, Bertold Brecht ou algum outro autor ou personalidade teatral que você admire.
Para Nelson Rodrigues: O senhor tem noção de que sua obra configura um dos sistemas dramáticos mais poderosos jamais criados em toda a história do teatro?
O teatro está vivo?
O teatro vive hoje um dos maiores momentos de sua história, um autêntico renascimento, graças à reinvenção de suas formas perpetrada, sobretudo, pelos dramaturgos contemporâneos. O grande desafio para a dramaturgia, hoje, é problematizar a ideia de trama, de conflito, de personagem (esteios do drama tradicional, ligados ideologicamente a uma visão hegemônica acerca da condição humana), e, promovendo o desenvolvimento de obras com outras bases, conseguir fazer com que estas se tensionem, criem ruídos, deslocamentos, desdobramentos, em suma: fiquem de pé, proporcionando experiências estéticas inaugurais que ampliem nossas vivências, conduzindo-nos em venturas desconhecidas.
SP Escola de Teatro - Centro de Formação das Artes do Palco
14/02/2011